— É tudo culpa minha. Eu mereço o que aconteceu comigo.
A voz de Yara era um sussurro, quase engolido pelo silêncio pesado da sala. As cortinas estavam fechadas, deixando entrar apenas frestas de luz que iluminavam o pó suspenso no ar. Seus ombros estavam curvados, como se carregasse o peso de um mundo que a esmagava desde a infância.
Ela sofreu abusos dos primos e tios quando era pequena. Quando tentou contar ao pai, ouviu dele que, de alguma forma, era responsável. Que ela havia provocado. Que era sua culpa.
Ouvir aquilo era de cortar o coração. Uma criança de 9 anos, frágil, indefesa, responsabilizada por algo tão desumano. Mas para Yara, essa era a única verdade que conhecia. Uma verdade que a perseguia como uma sombra, mesmo anos depois.
— Eu sou suja. Eu sou errada. Eu sou um lixo.
Ela repetia essas frases como um mantra cruel, sem perceber que não era ela quem falava, mas as vozes de seus abusadores e familiares, do passado, ecoando dentro de si. Cada palavra parecia cavar um buraco mais fundo em sua alma, como se ela estivesse presa em um labirinto de dor e culpa.
— Yara, quem é você? — perguntei um dia, olhando-a profundamente nos olhos
Ela hesitou, confusa. Seus dedos se entrelaçaram, apertando-se.
— Como assim? Eu sou eu.
— Mas quem é esse “eu”? Quem definiu isso? Você? Ou as vozes do seu pai, dos seus abusadores, das suas dores?
Ela abaixou a cabeça, os olhos fixos no chão. O silêncio que se seguiu era profundo, carregado de emoções não ditas. Eu esperei pacientemente, dando-lhe o tempo que precisava.
— Yara — continuei, calmamente —, sua identidade não é uma prisão. Não é um rótulo fixo. Você já pensou que talvez tenha passado a vida inteira carregando palavras que não são suas? Que seu “eu” foi moldado por traumas, pela dor, e não pela verdade de quem você realmente é?
Ela me olhou com uma mistura de dúvida e esperança. Seus olhos, antes distantes, pareciam buscar algo, como se tentassem enxergar além da névoa que a envolvia.
— Mas como posso mudar isso? Como posso ser outra pessoa? — sua voz baixa, quase inaudível, carregava uma necessidade genuína de respostas.
— Você não precisa ser “outra” pessoa. Você precisa ser quem sempre foi antes de começar a acreditar naquilo que te fizeram crer que era. — Fiz uma pausa. — Me conte, quem você era antes do evento que lhe traumatizou?
Yara franziu a testa, como se tentasse se lembrar de algo distante, quase perdido no tempo.
— Eu… não sei. — Ela engoliu seco. — Eu era só uma criança. Como posso saber quem eu era?
Sorri com carinho, tentando transmitir segurança.
— Então, minha querida, talvez estejamos diante de um momento poderoso. Você não precisa descobrir isso sozinha, e nem de uma vez. Mas eu te garanto uma coisa: você não é sua dor. Você não é o que te fizeram.
Ela respirou fundo, como se estivesse tentando absorver cada palavra. Pela primeira vez, notei um brilho diferente em seus olhos. Pequeno, quase imperceptível, mas presente. Como uma faísca que anuncia o começo de um incêndio.
— E se eu falhar? — sussurrou, sua voz tremendo levemente, como se a própria ideia de tentar fosse assustadora.
— Todos tropeçam, Yara. Mas a cada queda, você escolhe levantar. A diferença agora é que você não está mais sozinha.
Ela fechou os olhos por um instante, absorvendo aquelas palavras. Seu peito subiu e desceu em uma respiração lenta, como se estivesse se preparando para algo grande. Então, com um suspiro, ergueu o olhar e, pela primeira vez, sua voz não tremeu.
— Eu quero tentar.
A reconstrução havia começado. Ainda havia um longo caminho pela frente, mas naquele momento, a faísca em seus olhos parecia prometer que, talvez, um dia, ela pudesse se ver como realmente era: não como a dor que carregava, mas como a pessoa que sempre esteve lá, esperando para renascer.
“A ferida é o lugar por onde a luz entra em você.” — Rumi
— Alessander Raker Stehling
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