Recordo-me saudosamente da minha infância na década de 80. Jogávamos bola na rua, brincávamos com jogos de tabuleiro, e eu, particularmente, amava ouvir as histórias de contos de fadas que minha mãe contava. Na escola, os trabalhos eram manuais; fui educado em uma instituição que adotava o modelo de Maria Montessori, uma pedagoga revolucionária que valorizava o aprendizado através da experiência, da curiosidade e do raciocínio. Desafios diários estimulavam nossa criatividade e faziam do pensamento ativo e criador uma parte integral do nosso desenvolvimento.
De lá para cá, muita coisa mudou. E, infelizmente, nem tudo para melhor.
Lendo o livro “Meditações”, de Marco Aurélio, grande filósofo e imperador romano, deparo-me com seu alerta sobre a importância de manter o pensamento ocupado com o que é próprio a um ser vivo racional e social. Em uma sociedade que valoriza a razão, a criatividade e a interação humana, o desenvolvimento das crianças seria direcionado para a construção de mentes críticas, criativas e socialmente engajadas. No entanto, o que vemos hoje é uma triste regressão.
Pesquisas recentes indicam que a inteligência do ser humano está involuindo. E como não poderia ser diferente? Vivemos em um mundo onde as telas substituíram a riquíssima interação humana, e o Google e as inteligências artificiais tomaram o lugar da criatividade. O que antes era uma infância cheia de estímulos sensoriais e mentais transformou-se em uma realidade virtual onde as crianças são meras espectadoras, não participantes.
Na década de 80, éramos desafiados a pensar, a resolver problemas, a nos mover, a criar. As ruas eram laboratórios de vida, onde aprendíamos o valor da convivência e a arte da negociação — quem jogou bola ou queimada nessa época sabe do que estou falando. O trabalho manual nas escolas estimulava a coordenação motora, a paciência e a satisfação de ver algo criado pelas próprias mãos. O que temos hoje? Crianças e adolescentes hipnotizados por telas, com cérebros subalimentados em termos de estímulo criativo, emocional e social — conhece alguns assim? Creio que muitos.
Não é mera coincidência que vemos uma crescente falta de concentração, aumento nos transtornos de ansiedade, TDAH, depressão, e uma alarmante incapacidade de resolver problemas básicos sem o auxílio de uma máquina. A passividade mental se tornou a norma, enquanto a verdadeira reflexão e a capacidade de engajamento crítico estão sendo dia a dia relegadas ao esquecimento.
Estudos demonstram que o uso excessivo de dispositivos digitais por crianças prejudica o desenvolvimento cognitivo — sobretudo na primeira infância, ou seja, até os 5 anos —, afetando áreas do cérebro responsáveis pela linguagem, memória, atenção e habilidades sociais. Além disso, a exposição contínua a estímulos rápidos e superficiais deteriora a capacidade de focar em atividades que exigem raciocínio mais profundo.
Mas não se trata apenas de dados científicos; trata-se de uma realidade palpável, visível nas novas gerações. Onde deixamos a rica interação humana? O brilho nos olhos ao descobrir algo novo, a chama da curiosidade sadia, apagou-se? Onde está a coragem de enfrentar desafios e a satisfação de superá-los? Estamos criando uma geração de mentes adormecidas, incapazes de se conectar profundamente com o mundo ao seu redor, pessoas presas em uma bolha, acreditando que suas opiniões e visões são as únicas possíveis, e isso deve nos alarmar.
É preciso repensar a forma como estamos educando nossas crianças. Devemos devolver-lhes a capacidade de se maravilhar, de criar, de interagir de forma significativa com o mundo. Precisamos substituir a passividade das telas pela vitalidade das experiências reais, onde o pensamento crítico e a socialização sejam o centro do desenvolvimento humano — afinal, foi isso que nossos antepassados sempre fizeram; nosso aparato biológico evoluiu para isso.
A reflexão final é simples: será que estamos, como sociedade, ocupando nossas mentes com o que é próprio a seres vivos racionais e sociais, como nos orienta Marco Aurélio? Ou estamos nos deixando levar pela comodidade das telas e das soluções fáceis, em detrimento do verdadeiro desenvolvimento intelectual e emocional de nossas crianças?
Se não mudarmos agora, a regressão da inteligência humana será apenas o primeiro de muitos sintomas de uma sociedade que, ao invés de avançar, caminhará paulatinamente em direção ao emburrecimento coletivo. Isso seria uma tragédia.
— Alessander Raker Stehling
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